O
Mito da Caverna e o Mito da Reminiscência
Marilena Chaui*
I - O MITO DA CAVERNA
No livro VII da República, Platão narra o Mito da Caverna, alegoria da teoria do conhecimento e da paidéia platônicas.
Imaginemos uma
caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a
passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após geração, seres
humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada, nem
locomover-se, forçados a olhar apenas a parede do fundo, e sem nunca terem
visto o mundo exterior nem a luz do Sol. Acima do muro, uma réstia de luz
exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as
coisas que se passam no mundo exterior sejam projetadas como sombras nas
paredes do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e
carregando nos ombros figuras de homens, mulheres, animais cujas sombras são
projetadas na parede da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são
as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são os seres vivos
que se movem e falam. Um dos prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide
fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala
o muro. Sai da caverna, e no primeiro instante fica totalmente cego pela luminosidade
do Sol, com a qual seus olhos não estão acostumados; pouco a pouco, habitua-se
à luz e começa ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de,
finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas
sombras. Deseja ficar longe da caverna e só voltará a ela se for obrigado, para
contar o que viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o
caminho era íngreme e a luz ofuscante, também o retorno será penoso, pois será
preciso habituar-se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que
habituar-se à luz. De volta á caverna, o prisioneiro será desajeitado, não
saberá mover-se nem falar de modo compreensível para os outros, não será
acreditado por eles e correrá o risco de ser morto pelos que jamais abandonaram
a caverna.
A caverna, diz
Platão, é o mundo sensível onde vivemos. A réstia de luz que projeta as sombras
na parede é um reflexo da luz verdadeira (as idéias) sobre o mundo sensível.
Somos os prisioneiros. As sombras são as coisas sensíveis que tomamos pelas
verdadeiras. Os grilhões são nossos preconceitos, nossa confiança em nossos
sentidos e opiniões. O instrumento que quebra os grilhões e faz a escalada do
muro é a dialética. O prisioneiro curioso que escapa é o filósofo. A luz que ele
vê é a luz plena do Ser, isto é, o Bem, que ilumina o mundo inteligível como o
Sol ilumina o mundo sensível. O retorno à caverna é o diálogo filosófico. Os
anos despendidos na criação do instrumento para sair da caverna são o esforço
da alma, descrito na Carta Sétima, para produzir a "faísca" do
conhecimento verdadeiro pela "fricção" dos modos de conhecimento.
Conhecer é um ato de libertação e de iluminação.
O Mito da Caverna
apresenta a dialética como movimento ascendente de libertação do nosso olhar
que nos libera da cegueira para vermos a luz das idéias. Mas descreve também o
retorno do prisioneiro para ensinar aos que permaneceram na caverna como sair
dela. Há, assim, dois movimentos: o de ascensão (a dialética ascendente), que
vai da imagem à crença ou opinião, desta para a matemática e desta para a
intuição intelectual e à ciência; e o de descensão (a dialética descendente),
que consiste em praticar com outros o trabalho para subir até a essência e a
idéia. Aquele que contemplou as idéias no mundo inteligível desce aos que ainda
não as contemplaram para ensinar-lhes o caminho. Por isso, desde Mênon, Platão
dissera que não é possível ensinar o que são as coisas, mas apenas ensinar a
procurá-las.
Os olhos foram
feitos para ver; a alma, para conhecer. Os primeiros estão destinados à luz
solar; a segunda, à fulguração da idéia. A dialética é a técnica liberadora dos
olhos do espírito.
O relato da subida
e da descida expõe a paidéia como dupla violência necessária: a ascensão é
difícil, dolorosa, quase insuportável; o retorno à caverna, uma imposição
terrível à alma libertada, agora forçada a abandonar a luz e a felicidade. A
dialética, como toda a técnica, é uma atividade exercida contra uma
passividade, um esforço (pónos) para concretizar seu fim forçando um ser a
realizar sua própria natureza. No Mito, a dialética faz a alma ver sua própria
essência (eîdos) - conhecer - vendo as essências (idéia) - o objeto do
conhecimento -, descobrindo seu parentesco com elas. A violência é libertadora
porque desliga a alma do corpo, forçando-a a abandonar o sensível pelo
inteligível.
O Mito da Caverna
nos ensina algo mais, afirma o filósofo alemão Martin Heidegger, num ensaio
intitulado "A doutrina de Platão sobre a verdade", que interpreta o
Mito como exposição platônica do conceito da verdade. Deste ensaio, destacamos
alguns aspectos:
1) O Mito da
Caverna estabelece uma relação interna ou intrínseca entre a paidéia e a
alétheia: a filosofia é educação ou pedagogia para a verdade. O Mito propõe uma
analogia entre os olhos do corpo e os olhos do espírito quando passam da
obscuridade à luz: assim como os primeiros ficam ofuscados pela luminosidade do
Sol, assim também o espírito sofre um ofuscamento no primeiro contato com a luz
da idéia do Bem que ilumina o mundo das idéias. A trajetória do prisioneiro
descreve a essência do homem (um ser dotado de corpo e alma) e sua destinação
verdadeira (o conhecimento das idéias). Esta destinação é seu destino: o homem
está destinado à razão e à verdade. Por que, então, a maioria permanece
prisioneira da caverna? Porque a alma não recebe a paidéia adequada à
destinação humana. Assim, a paidéia, alegoricamente descrita no mito, é
"uma conversão no olhar", isto é, a mudança na direção de nosso
pensamento, que, deixando de olhar as sombras (pensar sobre as coisas
sensíveis), passa a olhar as coisas verdadeiras (pensar nas idéias). E, observa
Heidegger, não foi por acaso que Platão escolheu a palavra eîdos para designar
as idéias ou formas inteligíveis, pois eîdos significa: figura e forma visíveis.
O eîdos é o que o olho do espírito, educado, torna-se capaz de ver.
2) O Mito da
Caverna recupera o antigo sentido da alétheia como não-esquecimento e
não-ocultamento da realidade. Alétheia é o que foi arrancado do esquecimento e
do ocultamento, fazendo-se visível para o espírito, embora invisível para o
corpo. A verdade é uma visão, visão da idéia, do que está plenamente visível
para a inteligência e, por ser visão plena, a verdade é evidência.
3) A idéia do Bem,
correspondente ao Sol, não só ilumina todas as outras, isto é, torna todas as
outras visíveis para o olho do espírito, mas é também a idéia suprema, tanto
porque é a visibilidade plena quanto porque é a causa da visibilidade de todo o
mundo inteligível. A filosofia, conhecimento da verdade, é conhecimento da
idéia do Bem, princípio incondicionado de todas as essências. Assim como o Sol
permite aos olhos ver, assim o Bem permite à alma conhecer. A luz é a meditação
entre aquele que conhece e o aquilo que se conhece.
4) O Mito possui
ainda um outro sentido pelo qual compreendemos por que Platão é o inventor da
razão ocidental. De fato, na origem (como vimos em nosso primeiro capítulo), a
palavra alétheia é uma palavra negativa (a - létheia), significando o não
esquecido, não escondido. Com o Mito da Caverna, porém, a verdade, tornando-se
evidência ou visibilidade plena e total, faz com que a alétheia perca o antigo
sentido negativo e ganhe um sentido positivo ou afirmativo. Em lugar de
dizermos que o verdadeiro é o não escondido, Platão nos leva a dizer que a
verdade é o plenamente visível para o espírito. A verdade deixa de ser o
próprio Ser manifestando-se para tornar-se a razão que, pelo olhar intelectual,
faz da idéia a essência inteiramente vista e contemplada, sem sombras. A
verdade se transfere do Ser para o conhecimento total e pleno da idéia do Bem.
Com isto, escreve Heidegger, a verdade dependerá, de agora em diante, do olhar
correto, isto é, do olhar que olha na direção certa, do olhar exato e rigoroso.
Exatidão, rigor, correção são as qualidades e propriedades da razão, no
Ocidente. A verdade e a razão são theoría, contemplação das idéias quando
aprendemos a dirigir o intelecto na direção certa, isto é, para o conhecimento
das essências das coisas.
No entanto,
julgamos que, contrariamente ao que diz Heidegger, o antigo sentido da alétheia
não desapareceu inteiramente. Vejamos como e por quê.
II. O MITO DA REMINISCêNCIA
É preciso explicar como, vivendo no
mundo sensível, alguns homens sentem atração pelo mundo inteligível. Como,
nunca tendo tido contato com o mundo das idéias, jamais tendo contemplado as
idéias, algumas almas as procuram? De onde vem o desejo de sair da caverna?
Mais do que isto, como os que sempre viveram na caverna podem supor que exista
um mundo foram dela, se os grilhões e os altos muros não deixam ver nada
externo? Para decifrar este enigma, Platão narra o Mito de Er, também conhecido
como o Mito da Reminiscência, da anamnese, que vimos ser inseparável da antiga
idéia da alétheia (o não-esquecido).
O pastor Er, da Panfília, é
conduzido pela deusa até o Reino dos Mortos, para onde (como já vimos) segundo
a tradição grega, sempre foram conduzidos os poetas e adivinhos. Ele encontra
as almas dos mortos serenamente contemplando as idéias. Devendo reencarnar-se,
as almas serão levadas para escolher a nova vida que terão na Terra. São livres
para escolher a nova vida terrena que desejam viver. Após a escolha, são
conduzidas por uma planície onde correm as águas do rio Léthe (esquecimento).
As almas que escolheram uma vida de poder, riqueza, glória, fama ou vida de
prazeres, bebem água em grande quantidade, o que as faz esquecer as idéias que
contemplaram. As almas dos que escolhem a sabedoria quase não bebem das águas e
por isso, na vida terrena, poderão lembrar-se das idéias que contemplaram e
alcançar, nesta vida, o conhecimento verdadeiro. Desejarão a verdade, serão
atraídas por ela, sentirão amor pelo conhecimento, porque, vagamente,
lembram-se de que já a viram e já a tiveram. Por isso, no Mênon, quando o jovem
escravo analfabeto se torna capaz, orientado pelas perguntas de Sócrates, de
demonstrar o Teorema de Pitágoras, Platão faz Sócrates dizer que conhecer é
lembrar, e o filósofo dialético, como o médico que faz o paciente lembrar-se,
suscita nos outros a lembrança do verdadeiro. Se já não tivéssemos estado
diante da verdade, não só não poderíamos desejá-la como, chegando diante dela,
não saberíamos identificá-la, reconhecê-la.
Os intérpretes se dividem muito
acerca do Mito de Er. Seria o mito uma alegoria para dizer que os homens nascem
dotados de razão, que as idéias são inatas ao seu espírito, que a verdade não
pode vir da sensação, mas apenas do pensamento? Ou seria o Mito de Er uma
primeira apresentação da teoria platônica da imortalidade da alma que será
exposta no Fédon? Por enquanto deixaremos a questão em suspenso e a ela
voltaremos quando analisarmos a psicologia platônica. Aqui devemos enfatizar
dois pontos.
? Em primeiro lugar, que Platão,
através de dois mitos - o da caverna e o de Er - recupera a antiga noção da alétheia
(o não-esquecido), ainda que a transforme profundamente, como vimos. Para um
pensamento que toma a verdade como evidência, o verdadeiro é a retidão do olhar
espiritual, isto é, a correspondência entre a idéia e a sua representação
intelectual. Somos co-autores do verdadeiro.
? Em segundo lugar, que Platão
precisa recorrer aos mitos para explicar por que, sem possuirmos conhecimentos
verdadeiros, desejamos o conhecimento verdadeiro. Precisa explicar que, de
algum modo, já estamos na posse de alguma noção (ainda que muito vaga) da
verdade e que é ela que nos empurra para a dialética. Independentemente da
discussão sobre o que Platão realmente pensava dos mitos que narrou, podemos
dizer que possuem a função de afirmar que nascemos do verdadeiro e destinados a
ele. Sem isto, a dialética seria uma técnica impossível, pois não teria o que
atualizar em nossa alma.
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